Eletrobras, Dutobras e o Jaboti

Eletrobras, Dutobras e o Jaboti

Nos últimos tempos tenho mostrado as idiossincrasias do aparato regulatório do setor energético brasileiro. Foi o que fiz em artigo no Valor de 13 de novembro de 2017 e 9 de abril de 2018. O assunto é aqui ampliado, para destacar a criatividade da estrutura política vigente para transformar uma boa ideia em uma peça de muito mau gosto.

No fim de 2017 o governo enviou ao Congresso a Medida Provisória (MP) 814, conhecida como “MP da Eletrobras “. A motivação era importante: a privatização da holding federal do sistema elétrico. Quatro meses depois, percebe-se que a MP contempla de tudo, menos a privatização, que, repita-se, era seu objetivo. Um golpe de mestre. Com emendas sem qualquer vinculação com o objeto, a MP serve agora para carregar os “espíritos” da ineficiência e de outras coisinhas mais. Não poderia ser diferente: a MP chegou ao Congresso com uma página e três artigos, e já ganhou 30 páginas e 27 artigos, alguns com temas emblemáticos.

Destaco quatro deles, a começar por Angra 3, talvez, no setor elétrico, o principal símbolo do descaso, fruto do estatismo desmedido. A usina está com obras paralisadas, mas lá já foram enterrados mais de R$ 15 bilhões, que hoje não valem a metade disso. Em um sistema no qual, equivocadamente, as hidrelétricas, quando muito, são construídas sem reservatórios, a energia nuclear é um bom caminho para a segurança do abastecimento, mas isso não pode se dar a qualquer custo.

Uma das emendas à MP autoriza que a tarifa de Angra 3 seja elevada de R$ 242/MWh para R$ 500/MWh, a pretexto do uso de preços internacionais. O resultado é que os consumidores suportarão um custo adicional de quase R$ 2 bilhões/ano.

O segundo caso é uma aula prática dos efeitos do poder de monopólio. Em fevereiro de 2000, temendo o racionamento que acabou acontecendo entre 2001 e 2002, o governo criou o Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT). Tal programa assegurava o fornecimento de gás natural por 20 anos, conforme preço estabelecido em um decreto. Contudo, a Petrobras tem ameaçado com a interrupção do suprimento de gás, já sendo isso efetivo para uma das usinas, a Termofortaleza.

O argumento da supridora consiste no preço do combustível, US$ 4/MMBTU, quando ela mesmo já o vende por até três vezes mais. Então, o que fazer? Obrigar o cumprimento do contrato ou simplesmente achar uma MP e nela colocar mais um jabuti? Claro, optou-se pela segunda alternativa, mais fácil, convencional nos dias atuais.

Não é a primeira vez que a monopolista do gás usa tal tática. Na primeira, em 2004, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostrou-lhe que não aceitaria a artimanha. Na segunda, em 2007, o governo a fez assinar um Termo de Ajustamento de Conduta que, pasmem, determinava tão somente o cumprimento do contrato. Nesta terceira oportunidade, o caminho das pedras para aumentar o preço do gás parece ter sido encontrado. A Termofortaleza, que confiou em um decreto do Executivo, pode sofrer sérios prejuízos ao ficar sem produzir energia.

Pode até perder sua outorga, sem que para isto tenha dado causa. Uma emenda à MP foi a saída encontrada, só que com custo adicional de R$ 2,1 bilhões para os consumidores, que pode ser um pouco menos se for considerada a substituição eventual por usinas mais caras. Uma curiosidade: por que a MP não propõe o uso do preço internacional, a exemplo do que foi sugerido para a Angra 3? Porque tal preço varia entre US$ 3/MMBTU e US$ 5/MMBTU, pouco para as pretensões.

O terceiro tema mostra com perfeição a vulnerabilidade da infraestrutura regulatória do setor energético, como se as atribuições pudessem ser modificadas de acordo com a direção do vento. Em meados dos anos 2000, a Eletrobras, por meio de sua subsidiária no Estado do Amazonas, decidiu construir uma termelétrica a gás natural. Ótimo. O custo da usina e do gás seriam bancados pela Conta de Consumo de Combustíveis, um encargo que faz os consumidores de todo o Brasil pagarem por mais uma fonte de ineficiência estatal, a mãe da insegurança jurídica. Foi assinado, então, um contrato com a Petrobras, que utilizaria o gasoduto Urucu-Coari-Manaus para fornecer o combustível.

Sucede que a usina construída, por ser bem menor que o previsto, não consegue utilizar todo gás contratado. Como a legislação em vigor só permite (por óbvio) que o consumidor pague pelo combustível efetivamente utilizado, surgiu daí uma disputa (entre as duas estatais e a Aneel) que já dura 5 anos. A Aneel, corretamente, não aceita o repasse para as tarifas da parte (R$ 3 bilhões) não utilizada do gasoduto. Qual foi a saída encontrada? Claro, uma nova Emenda à MP 814, autorizando o repasse dos custos para os consumidores, mas com requintes de crueldades: a Aneel foi retirada do circuito, sendo substituída pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Ganha um doce quem adivinhar o porquê. Mais: a ANP é autorizada a estudar o aumento do preço do gás, que é outra demanda da Petrobras há um bom tempo.

A “bondade” do parlamento não para por aí. A MP foi aproveitada para simplificar, mas ao mesmo tempo aumentar a faixa de usuários alcançados pela tarifa social. Se for aprovada tal como o texto original do relator, o consumo de até 80 kWh fica isento do pagamento da conta de luz. Um detalhe: como o consumo médio no Brasil é de 150 kWh, mais da metade disso utilizará energia sem qualquer pagamento. O custo da “bondade” pode chegar a R$ 1,5 bilhão. É verdade que a crise pode ter empurrado uma grande quantidade de pessoas para a pobreza absoluta, mas não é dessa forma que o problema é resolvido. Estimular o uso eficiente da energia sai muito mais barato do que a emenda e tem efeitos permanentes. Porém, nossas vicissitudes tornam bem mais fácil plantar mais um jabuti.

O ponto máximo da criatividade, combinado com o ápice do desvio de finalidade, consiste na criação do Dutogas (sic), um fundo para a expansão da rede de gasodutos. Apesar de todas as mazelas, a regulação do segmento do gás natural não contemplava um encargo, o que é agora inaugurado, e com mais custos, lógico. A propósito, além do aumento de, no mínimo, 6% nas tarifas, mais os 15% já previstos para este ano, o desvio de finalidade é outra marca da nova MP. Lá tem outras pérolas, como em toda a Medida, que emudeceu sobre a privatização da Eletrobras. Em conclusão: pelo Dutogas foi-se uma boa ideia e fluiu o mau gosto do vale tudo e da elevação dos custos. E com um grave precedente para questionamentos futuros por quem tem baixado os preços nos leilões. Bastará enfeitar a árvore com mais um jabuti.